Revista Aptare: para o médico se adaptar melhor aos “velhos tempos”

Três saudáveis vertentes fizeram nascer a Aptare: a primeira, a união de dois sonhos – o jornalismo feito na USP e o amor pela medicina; em seguida, as experiências familiares; e, tão importante quanto os demais, a certeza de que o envelhecimento da população brasileira exige olhares mais atentos, mais certeiros, mais “aptos”. Além, sem dúvida, de doses consistentes de idealismo e sonhos. Sua idealizadora e editora, Lilian Liang, filha de imigrantes chineses, credita o resultado desse sonho a uma competente equipe em torno da revista. Dirigida especialmente ao médico de especialidades clínicas, a fim de capacitá-lo a cuidar melhor dos pacientes idosos, sempre aproximando os profissionais da Geriatria e da Gerontologia. A revista obteve excelente repercussão, já no início de sua trajetória, que certamente será longa. Com esta entrevista, o Portal do Envelhecimento e a Aptare firmam parceria, em colaboração recíproca. Afinal, os sonhos e o trabalho do Portal são os mesmos da publicação: dignidade para quem envelhece.

 

revista-aptare-para-o-medico-se-adaptar-melhor-aos-velhos-temposPortal – Primeiramente gostaríamos de saber seus dados pessoais. Nasceu em São Paulo mesmo?

Lilian – Nasci em 1974, e cresci em São Paulo, filha mais velha de imigrantes chineses. Sou formada em jornalismo pela ECA-USP, profissão que me possibilitou – ainda me possibilita – um aprendizado intenso, diário. Foi munida de caneta, bloquinho e máquina fotográfica que saí pelo mundo em busca de histórias, da China a Moçambique, dos EUA ao Egito. Para alguém que nasceu com rodinhas nos pés, era o trabalho perfeito. Não fosse por um pequeno detalhe: me fazia falta o contato com a medicina. Desde pequena sou fascinada pelo corpo humano, por doenças, pela figura do médico. Na hora do vestibular, a dúvida pesou. Cheguei a ser aprovada no curso de medicina, mas algo me dizia que não resistiria à perda do primeiro paciente. Desisti e fui me aventurar pelo jornalismo. A familiaridade com as palavras era tão mais segura! Foi uma decisão difícil, mas da qual não me arrependo – o jornalismo me preparou para tratar da medicina sob um outro ângulo.

Está aí a graça das coisas: nem tudo é preto ou branco. O cinza, a conjunção de preferências e gostos, é o que torna tudo tão mais interessante. A certa altura da minha carreira, consegui conciliar meus dois interesses, numa combinação que alguns achavam esquizofrênica. Mas em 2005 tive a oportunidade de entrevistar o neurologista britânico Oliver Sacks, um dos meus autores preferidos, que durante a conversa me disse: “A medicina é feita de histórias – histórias e nada mais”. Foi então que descobri que me fascinavam na medicina as histórias por trás dela. O jornalismo me permitia contá-las. Estava tudo explicado.

Portal – O que a move?

Lilian – Como tantas coisas na vida, são as questões pessoais que nos movem. Venho de uma família de imigrantes chineses, que carregam uma cultura muito forte de respeito aos idosos. Mas respeito nem sempre quer dizer afeto, portanto, embora tenha crescido cercada de idosos, as relações eram distantes. Contribuía para essa distância a barreira da língua: meus avós, por exemplo, só falavam hakkanês, seu dialeto natal, e eu só aprendi o mandarim (minha primeira língua é o português, que aprendi com uma babá mineira). Nunca houve muita comunicação entre nós. Sei muito pouco sobre meus próprios avós. O que eles esperavam quando vieram para o Brasil? Como havia sido sua infância? Como se conheceram? Qual era a música preferida? Não sei responder, o que é pena. Ao desconhecer a vida de meus avós, deixo de conhecer parte de mim mesma.

Portal – Como o envelhecimento apareceu em sua vida?

Essa falta de interesse na questão do envelhecimento mudou de alguns anos para cá, com a doença de minha avó paterna. Ela tem um sem-fim de problemas crônicos e hoje, com 92 anos, encontra-se completamente debilitada. Um pouco antes de sua condição se agravar, ela fez uma última viagem à sua Taiwan natal. Voltou revigorada, feliz, cheia de energia. Mas poucas semanas após ter retornado ao Brasil, o quadro de saúde começou a piorar e hoje ela se encontra acamada e completamente dependente. Diante do declínio, não pude deixar de pensar se ela não teria sido mais feliz se tivesse envelhecido em seu próprio país. Envelhecer longe de referências é difícil – não apenas por causa de coisas básicas, como entender o que o médico está falando (minha avó não fala português), mas por questões mais profundas e fundamentais, que dizem respeito a sua inserção como indivíduo naquele contexto: “Em Taiwan sou vista como uma sábia. Como sou encarada aqui?”

E embora carregue as mesmas referências culturais, minha mãe, viúva, 62 anos, envelhece de forma completamente diferente da minha avó. Ela não se identifica como idosa, a ponto de preferir ficar na fila quilométrica do check-in a usar o guichê preferencial: “Mas, filha, ninguém vai acreditar que eu tenho mais de 60”. Ela não se identifica como idosa porque, para ela, idosa é aquela senhora que fica em casa fazendo tricô e bolos para os netinhos. Ela não podia estar mais longe disso. Mas no processo, ela se encontra numa espécie de zona de transição, no qual ela entende os dilemas de minha avó, tem seus próprios medos diante do envelhecimento num país “estranho”, mas consegue vislumbrar outros modelos para envelhecer de forma inserida, saudável e plena. Transitar nesses dois mundos não tem sido fácil para ela e vejo como minha mãe tenta se equilibrar nessa linha.

E eu, como curiosa que sou, resolvi me aprofundar nessas questões. O envelhecimento é um denominador comum, mas existem tantas formas de encará-lo e de lidar com ele! Sei que não envelhecerei como minha avó, nem como minha mãe, mas estaria mentindo se dissesse que sei como será o meu próprio processo. Mas acho que essa é uma das belezas do envelhecimento: você, de certa forma, escolhe como ele acontece.

revista-aptare-para-o-medico-se-adaptar-melhor-aos-velhos-temposPortal – Como surgiu a ideia da revista?

Lilian – Por causa do meu interesse em saúde, passei dois anos na África do Sul cobrindo HIV/Aids na África de língua portuguesa para uma agência de notícias da ONU. Apaixonei-me pelo tema, que, apesar de difícil, era extremamente desafiador, por envolver questões que iam muito além da medicina. HIV/Aids envolve direitos humanos, diferença de gêneros, política, economia, sexualidade, preconceito, políticas públicas… Nosso trabalho na agência era uma espécie de jornalismo misturado com ativismo, porque trazíamos a informação de forma a promover um maior conhecimento sobre o tema. E o conhecimento dissolve preconceitos.

Quando retornei ao Brasil, quis trabalhar com algo que me proporcionasse esse mesmo tipo de envolvimento e satisfação. E o envelhecimento se encaixava perfeitamente. O Brasil, com uma população de idosos crescente, está cada vez mais aberto para essa discussão, de forma mais profunda, embasada e prática. Comecei a fazer pesquisas sobre comunicação em saúde na área do envelhecimento. Conversa daqui, escuta de lá, o quebra-cabeça foi se montando. Graças ao apoio de grandes profissionais, como o dr. João Toniolo, da Unifesp, a dra. Claudia Fló, da USP, que são hoje os editores clínicos, fui identificando as lacunas de informação. E o que ficou claro foi: o Brasil está envelhecendo a passos largos, mas não existem profissionais de geriatria/gerontologia em número suficiente para cuidar dessa população. O que nós, como veículo, poderíamos fazer era tentar diminuir essa lacuna, trazendo informação de qualidade e aplicação prática para as especialidades clínicas, que são, no fim, as que acabam cuidando do paciente idoso. Saímos com a primeira edição e já tivemos uma repercussão muito boa. Recebemos muitos e-mails e ligações de profissionais dizendo que realmente sentiam falta de informações sobre o cuidado com o idoso. Acredito que estamos no caminho certo.

Portal – E o nome, quem batizou?

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Lilian – Aptare vem do latim, tornar apto. Foi uma escolha feita depois de muita pesquisa e conversas, por ser um nome que resume bem o objetivo da revista. O “tornar apto” se aplica ao nosso leitor, que é o médico de especialidades clínicas, no sentido de capacitá-lo a cuidar melhor dos pacientes idosos. Mas se aplica ainda ao paciente, porque ao receber um tratamento melhor, ele se torna apto a aproveitar essa fase da vida da melhor maneira possível, com saúde e disposição.

Portal – Da ideia à revista impressa, quais percursos foram feitos?

Lilian – Da primeira reunião sobre o tema, com a oftalmogeriatra Marcela Cypel, colaboradora do Portal, até a revista impressa foram quatro meses de muito trabalho. Tive a sorte de encontrar profissionais que não só se dispuseram a me ensinar sobre o envelhecimento – afinal, era meu primeiro contato com a geriatria/gerontologia de maneira mais formal –, mas me ajudaram a direcionar melhor o projeto. A ideia inicial era fazer uma revista sobre geriatria para geriatras, mas a partir das conversas e pesquisas, percebi que a necessidade era outra. Essa orientação foi essencial para criar um modelo que preenchesse uma lacuna de informação.

Outro passo muito importante na fase de elaboração da revista foi a composição do nosso conselho editorial. Procuramos compor um conselho representativo, de diversas especialidades e Estados, pois a Aptare tem distribuição nacional. Temos conosco os principais especialistas em envelhecimento no Brasil, que nos ajudam com entrevistas, sugestões de temas, avaliação de artigos, de maneira voluntária – o que diz muito sobre a proposta da revista, acredito.

Uma vez definida a identidade da revista, seguimos o fechamento em velocidade de cruzeiro. Artigos entregues dentro dos prazos, edição, revisão, diagramação sob a responsabilidade de uma equipe de primeira – isso torna o processo bem mais suave. E o mais engraçado é que, embora acompanhe todo o processo, ainda me emociono quando a publicação chega impressa, com aquele cheiro de revista recém-saída da gráfica.

O que me surpreendeu – e ajudou muito para que a revista saísse em tempo recorde – foi exatamente a abertura dos profissionais da área. Há uma “boa vontade”, por falta de expressão mais precisa, para se falar sobre o assunto, porque entende-se que quanto mais o o tema for discutido, melhor. Não houve nenhuma conversa da qual saí de mãos vazias. Todos os profissionais de geriatria e gerontologia com quem conversei – infelizmente não tenho como citar todos aqui – contribuíram para que a Aptare se tornasse o que é hoje. Se não houvesse essa generosidade de conhecimento e tempo, acho que a revista ainda seria apenas uma ideia.

Portal – Quando foi lançada e qual é a tiragem?

Lilian – A Revista Aptare foi lançada em agosto de 2012 com uma tiragem de 12 mil exemplares.

Portal – Quais os objetivos principais?

Lilian – Queremos aproximar o profissional clínico do universo da geriatria e da gerontologia. A realidade hoje é essa: as salas de espera dos consultórios estão envelhecendo. É imprescindível que o profissional de saúde se prepare para esse novo perfil de paciente, que não raro vem com uma série de condições concomitantes, muitas delas crônicas. A revista pretende ajudá-lo nesse processo de se informar. O movimento contribui, ainda que de forma modesta, para uma mudança na cultura médica de hoje, que é a da super-especialização. Na medicina de hoje, o paciente se tornou um órgão – um coração, um rim, um pulmão. Ao trazermos artigos de diversas especialidades, queremos promover um maior diálogo entre elas. Quanto mais informação se tem sobre o paciente, melhor. Como numa orquestra, é necessário haver integração entre todos os músicos para que o melhor resultado seja alcançado.

Portal – Como você vê o mercado do envelhecimento no país?

Lilian – O Brasil está aos poucos acordando para o potencial desse mercado. Junto com o aumento da expectativa vieram outras mudanças: maior poder aquisitivo, mais tempo disponível, uma nova definição de papéis. Bancos estão desenvolvendo produtos específicos para esse público, assim como agências de turismo. Assisti a uma palestra muito interessante na IV Jornada Interdisciplinar de Geriatria e Gerontologia, no Sírio-Libanês, em junho, em que uma das palestrantes dava inúmeros exemplos de como o mercado vinha se preparando para esse novo consumidor: treinamentos para os atendentes no supermercado, produtos de perfumaria para avós, “shopping-moças” que ajudam idosos a circular em shopping centers, pacotes de viagem específicos para o viajante idoso, construtoras que já pensam em apartamentos amigos do idoso – afinal, o apartamento amigo do idoso é amigo de todos. Difícil acreditar que há alguns anos ninguém nem cogitava tais iniciativas. A inversão na pirâmide demográfica vai exigir que o mercado se reinvente.

Portal – Como empreendedora do envelhecimento, o que tem a dizer?

Lilian – Brinco que estou advogando em causa própria, porque quero que os médicos estejam preparados para cuidar de mim quando me tornar idosa. Mas brincadeiras à parte, acredito que faço parte de um movimento que começou com alguns pioneiros e que hoje ganha cada vez mais força. É inspirador ver as mudanças na forma como se encara o envelhecimento hoje, em todas as esferas. Minha esperança é que a Aptare venha, de alguma forma, ajudar nessa jornada.

Serviço

As pessoas que quiserem entrar em contato com a revista podem escrever para [email protected] ou ligar para (11) 2337-8763.

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