Paterson, onde nada e tudo acontece

Paterson, onde nada e tudo acontece

Paterson é um jovem poeta que percebe o mundo a partir de um ponto de vista muito particular: o de motorista de ônibus numa pequena cidade americana que tem o mesmo nome que ele: Paterson. Tudo que vê e que ouve se torna matéria de poesia.

Maria Antonia Demasi (*)

Tarde de terça feira.

A sala  do Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca em São Paulo estava quase lotada.

Olhando da última fileira, a imagem era bacana: dezenas de cabeças grisalhas, brancas e carecas que se mexiam de lá pra cá numa conversa animada à espera do  início da sessão.

Paterson foi o filme do mês de abril do projeto Itaú Viver Mais.

Além da entrada ser gratuita para quem tiver mais de 55 anos, acontece também logo após o término da exibição, um debate sobre o filme, sob a coordenação da equipe do Portal do Envelhecimento.

Quem não gosta de comentar sobre o que viu, o que sentiu, o que gostou ou o que detestou, na saidinha do cinema?

O filme acabou.

Subiu o letreiro.

Direção: Jim Jamursch

Elenco: Adam Driver como Paterson e Golshiftheh Farahani, como Laura.

O debate começou.

Gostaram do filme?

“Sim, mas é um filme diferente…

Como diferente?

Porque não acontece nada demais… nem de menos…é apenas uma semana normal na vida de uma pessoa um pouco diferente.

Diferente?

Sim, na vida de um motorista de ônibus que também é poeta!”

Paterson é um jovem poeta que percebe o mundo a partir de um ponto de vista muito particular: o de motorista de ônibus numa pequena cidade americana que tem o mesmo nome que ele: Paterson.

Tudo que vê e que ouve se torna matéria de poesia.

Ele é calmo, silencioso, atento e gentil.

E o que vocês acharam da relação dele com a jovem e linda mulher?

“Ela também é diferente?

Como diferente?

Ela parece que vive em outro mundo. Fica em casa o dia todo pintando tudo com círculos e esferas em preto: das cortinas da sala, passando pelo sofá, portas, móveis… um mundo de bolinhas em preto e branco.

Ela é uma artista!

E os dois se combinam…

Os dois.

Foram eles que mobilizaram as reflexões daquela tarde e muitas emoções.

Laura e Paterson são, à primeira vista,  muito diferentes entre si.

Laura extravasa todos seus sentimentos e desejos.

Paterson acolhe o universo de Laura imerso num silêncio inundado de amor.

Laura considera os poemas de Paterson muito bons e quer que ele tente publicá-los.

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Paterson apenas sorri.

Laura e Paterson Laura e Paterson Laura e Paterson…

O tempo escorria e todos os dias eles faziam tudo sempre igual.

O que parece ter encantado a todos é a singeleza dessa relação.

Quando tudo parecia que ia acabar numa grande  confusão, em tremendo problema, o fim de um casamento… pronto! Nada acontecia, era vida que seguia dando conta do incontornável, do absurdo e do imprevisível.

O filósofo alemão Nietzsche tem uma reflexão sobre  a vida como obra de arte  que se encaixa perfeitamente na problemática levantada pelo filme:

O que devemos aprender com os artistas. – De que meios dispomos para tornar as coisas belas, atraentes, desejáveis para nós, quando elas não o são? – eu acho que em si elas nunca o são!

E ninguém saiu do cinema achando que apesar de ambos estarem conectados com o que era emocionalmente essencial e viverem o amor traduzido em poesia e arte, tinham o que se pode chamar de “uma vida fácil”: tinham sim, a singularidade de cada um  acolhida  e transformada em potência de vida.

Ao final do debate, quando todos já estavam prontos para enfrentar a luz forte do lado de fora da sala escura, um poema de Manoel de Barros, o poeta que enxergava em cada recanto de seu Mato Grosso, matéria boa pra fazer e viver poesia.

Matéria de poesia /Manoel de Barros

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na
poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
– sapatos, adjetivos –
tem muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso

Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
– como um homem jogado fora
Aliás, é também objeto de poesia saber
qual o período médio que um homem jogado fora
pode permanecer na Terra
sem nascerem em sua boca
as raízes da escória

As coisa sem importância
são bens de poesia
pois é assim
que um chevrolé gosmento
chega ao poema
e as andorinhas de junho

Fragmento 1 do poema de abertura, Matéria de Poesia, 1974

 

(*) Maria Antonia Demasi é jornalista e mestre em Gerontologia pela PUC-SP. É colaboradora do Portal do Envelhecimento.

 

 

 

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