O quanto você conhece do outro?

O quanto você conhece do outro?

Filme trata de casal que já passou dos 60 e tem de lidar com as mazelas do envelhecimento, uma rotina entediante, um sexo que custa a acontecer, além dos inevitáveis problemas de saúde. Assistimos, também, em “45 Anos”, a cenas de uma vida em comum tecidas por encontros com amigos de anos, momentos de amor repletos de música, dança e tentativas de intimidade, pele com pele e algumas frustrações. Mas com que direito alguém mantém o passado no próprio “sótão” – um espaço compartilhado com a mulher, na sua própria casa – e, certo dia, resolve “abrir a porta” e viver a lembrança? 

 

Interessante, se não fosse trágico, pensar que os muitos anos vividos com alguém de nada servem se o assunto é o quanto você conhece do outro. Quer dizer, o universo da vida de alguém é um território esmagadoramente desconhecido, mesmo depois de quantidades enormes de anos de casamento.

45 anos (Reino Unido, 2015) filme de Andrew Haigh, lembra, e muito, as conturbadas relações entre um homem e uma mulher mostradas nas histórias do cineasta Ingmar Bergman (1918-2007). Tem-se a sensação de estar em “Cenas de um casamento”, “Saraband” e tantos outros filmes do diretor sueco.

A angústia está no ar e a emoção, quase constrangedora, toma conta da tela, principalmente pelas impecáveis atuações da ainda lindíssima Charlotte Rampling, a atenciosa e devota esposa Kate e Tom Courtenay, o incômodo e atrapalhado Geoff, marido que ainda vive secretamente a ideia do amor do passado.

O filme conta a história dos dias que antecedem a festa de 45 anos de casamento de Kate e Geoff, um casal que vive, aparentemente, a tranquilidade da maturidade. Preparativos discretos, conversas calmas e respeitosas, cuidados que uma boa esposa tem com seu marido, olhares sutis que pairam no ar: tentativas de uma mulher que deseja, a sua maneira, atender aos “pensamentos” de seu parceiro.

Isso basta para que se conheça o que se passa com alguém que vive a seu lado? Sinto dizer que não e comprovamos isso quando chega uma carta – endereçada para Geoff – com a notícia de que a ex-namorada que morreu num acidente nos Alpes, décadas atrás, teve o seu corpo encontrado no fundo de um vale nevado.

Como num passe de mágica, o passado com todas as boas lembranças, até então secretamente guardadas, invade, sem piedade, o presente de Kate e Geoff, um casal às vésperas de comemorar uma suposta feliz união.

A partir daí, a crise conjugal toma conta da cena. Não pense em brigas intensas, discussões ou questionamentos. Acontece o pior: uma enxurrada de silêncios devoradores, perguntas cujas respostas já se conhece, pequenas investigações “do que foi e que, pela morte, não é mais”.

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Sim, Kate tem a duríssima constatação: se esse antigo e importante amor não acabasse perdido no gelo, seu Geoff não estaria com ela, comemorando os 45 anos de casamento. Esse é o risco da palavra guardada, pergunta-se o que quer, ouve-se o que não quer e, como lidar com a verdade? É a velha e terrível frase: a ignorância protege.

É importante esclarecermos que falamos de um casal que já passou dos 60 e tem de lidar com as mazelas do envelhecimento, uma rotina entediante, um sexo que custa a acontecer, além dos inevitáveis problemas de saúde. Assistimos, também, a cenas de uma vida em comum tecidas por encontros com amigos de anos, momentos de amor repletos de música, dança e tentativas de intimidade, pele com pele e algumas frustrações.

Diante de problemas inerentes a vida em comum (e que não necessariamente é ruim), chega, inesperadamente, do túnel do tempo, a paixão da juventude, encontrada intacta, com a mesma imagem de antes. Geoff diz algo assim: “eu estou velho, e ela, continua com 27 anos”.

Sim, o gelo conservou a imagem, a lembrança e, quem sabe, também tenha conservado a paixão.  Geoff sofre e não esconde de Kate sua dor. Por mais que ela tente manter o equilíbrio e procure entender o marido, uma crise sem precedentes de ciúmes e falta de confiança acontece.

Como combater um passado de fragmentos de vida vivida? Poucos dias, não importa a quantidade, a emoção aconteceu e permaneceu viva em Geoff, sendo deflagrada com a notícia do amor da juventude “que retorna”. É a reaparição de um “fantasma” na vida de Kate.

O diretor Andrew Haigh prende nossa atenção até o final, até o grande dia: a celebração dos tais 45 anos de casamento acontecerá?

Aqui, deixarei para seus pensamentos voarem.

Os dias nos reservam surpresas e, claro, com um olhar feminino, não resisto em confessar que sofri muito por Geoff: com que direito esse homem mantém o passado em seu próprio “sótão” – um espaço compartilhado com a mulher, na sua própria casa – e, certo dia, resolve “abrir a porta” e viver a lembrança?

Algumas recordações, talvez, devam permanecer no passado e caso seja demasiadamente tentador trazê-las para o presente, que seja com uma ação concreta e efetiva.

De nada adianta viver a ideia de um amor que poderia ter sido e não foi, até porque o amor pede, implora e se rasga para ser “realizado”.

Trailer Aqui 

Luciana Helena Mussi

Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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Engenheira, psicóloga, mestre em Gerontologia pela PUC-SP e doutora em Psicologia Social PUC-SP. Membro da Comissão Editorial da Revista Kairós-Gerontologia. Coordenadora do Blog Tempo de Viver do Portal do Envelhecimento. Colaboradora do Portal do Envelhecimento. E-mail: [email protected].

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