Mamãe, Alzheimer e o espelho

Na evolução da patologia, a vaidade da minha mãe não sofreu alteração significativa na maioria dos estágios pelos quais passou. O espelho prosseguia a atestar e conferir detalhes e opiniões sobre a sua performance física. Nas poucas vezes que sugeri que deixasse os seus cabelos sem tingimento, ela mostrou-se arredia e incomodada pela ideia; tendo sua vontade acatada e respeitada.

Vera Helena Zaitune *

 

mamae-alzheimer-e-o-espelhoSendo o Alzheimer uma doença progressiva e degenerativa, a memória da minha mãe ficou cada dia mais reduzida, a esvair-se continuamente no fluxo cruel a que essa patologia submete o portador.

Minha mãe sempre foi muito vaidosa!

Desde a minha infância, eu gostava de bisbilhotar o seu guarda roupa e nele admirar as roupas multicoloridas penduradas nos cabides ou guardadas nas gavetas daquele móvel preto torneado e construído artesanalmente pelo meu tio Eleutério, um excelente marceneiro! Tal investida era realizada na ausência dela, que se irritava quando percebia que as peças não se encontravam exatamente no mesmo lugar.

Seu cabelo era bem tratado, tingido e arrumado todo final de semana. Nesse processo de cuidados pessoais, bóbis grossos e finos eram colocados na sua cabeça com a finalidade de avolumar o penteado.

No rosto, o uso do rouge e pó de arroz, precedidos de uma colônia de limpeza facial, apresentada num vidro verde ou cor de rosa eram indispensáveis ao seu ritual diário de embelezamento. O batom e o esmalte eram igualmente imprescindíveis.

Cresci assistindo minha mãe cuidar do seu visual. Inclusive, a insistir comigo para que eu não saísse de casa sem passar batom, o rouge e o pó de arroz no rosto, assim como a usar o laquê no meu cabelo a fim de que não desarrumasse.

Em todos os lugares pelos quais passava, eu percebia que ela procurava um espelho. Furtiva ou mais despojadamente, se olhava através de ângulos variados admirando-se vivamente.

Lembro-me dela relatando que os seus alunos da usina de açúcar, apreciavam vê-la “composta” para o exercício da sua função, que desempenhava com alegria e dedicação.

Quando tatuou a sobrancelha, arquitetou uma infinidade de justificativas para a aprovação desse gesto. Sentiu-se realizada quando na finalização do procedimento! Um espelho foi utilizado o tempo todo para acompanhar esse feito. Situações curiosas aconteceram nesse quadro de vaidade e gosto pelo belo. Uma delas refere-se a uma cena ocorrida numa praia de Ubatuba, lugar que minha mãe apreciava demasiadamente. Por vaidade e medo ela relutava em caminhar na água do mar, desfolhando uma infinidade de razões para me explicar que não devia se aventurar mar adentro. Naquele dia, consegui convencê-la a entrar comigo pelo fato da referida praia ser calma, sem ondas e da inexistência de perigo. Estávamos de mãos dadas a conversar relaxadamente quando inesperadamente uma pequena embarcação passou perto de nós, agitando a água do local. O susto dela foi tão grande, que ao movimentar-se, enfiou a cabeça na água, molhando com isso o tão valorizado cabelo e penteado. Levantou-se rapidamente e pedia desesperada que eu encontrasse um pente para ela se ajeitar, já que seria vergonhoso sair do mar com o cabelo desarrumado! Solicitou também um espelho. Rimos muito nesse dia!

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Na festa dos seus 80 anos minha mãe nos agraciou com um entusiasmo invejável, desfrutando intensamente de todos os momentos do evento, devidamente compartilhado com familiares e amigos queridos. Dançou e cantou a noite toda, surpreendendo-nos positivamente em todos os sentidos. Vestida com o vestido longo, num tom verde para “ornar” com a cor dos seus olhos, curtiu e despertou instantes de ternura e encantamento nos convidados quando no centro de uma roda rodopiou e entoou com todos a sua música predileta. No caso, “O Bêbado e a Equilibrista”. Vale lembrar que, para esse dia, diante do espelho, mamãe avaliava a sua postura a todo momento a fim de conferir o seu visual…

Depois dessa celebração memorável, algumas atitudes chamaram a atenção no seu comportamento, manifestadas com mais frequência quando vinha a passeio para minha casa.

Na cidade em que sempre viveu, as referências que possuía ocultavam reações que suscitassem preocupação dos familiares e amigos. Em seguida, no casamento de uma das minhas filhas, pessoas conhecidas se inquietavam pelo fato de minha mãe repetir ações despercebidas somente para ela. Observando tais estranhezas, cada dia mais cotidianas, busquei ajuda e orientação médica e depois de exames realizados e dos relatos sobre comportamentos perfilados, tivemos o diagnóstico de uma doença muito temida pela minha mãe, no caso, Alzheimer além de Parkinson.

Na evolução da patologia, a vaidade da minha mãe não sofreu alteração significativa na maioria dos estágios pelos quais passou. O espelho prosseguia a atestar e conferir detalhes e opiniões sobre a sua performance física. Nas poucas vezes que sugeri que deixasse os seus cabelos sem tingimento, ela mostrou-se arredia e incomodada pela ideia; tendo sua vontade acatada e respeitada. O uso do batom, do esmalte e do perfume de aroma leve integravam assiduamente a rotina da minha mãe.

Sendo o Alzheimer uma doença progressiva e degenerativa, a memória da minha mãe ficou cada dia mais reduzida, a esvair-se continuamente no fluxo cruel a que essa patologia submete o portador.

Lentamente, os personagens que habitavam o universo materno foram se dissipando e se perdendo num outro que a conduzia a um mutismo contínuo e implacável! Eu fui a última pessoa que ela esqueceu…. Me atribuiu o papel de sua irmã, amiga e às vezes, o de sua mãe…

No contexto de que dispúnhamos, medidas preventivas foram realizadas, dentre elas, retirar as próteses dentárias por uma questão de segurança; sobretudo à noite. A aparência da minha mãe se modificou alterando toda a musculatura da sua face.

Felizmente, o espelho já não significava mais nada para ela …. Ainda bem! Caminhávamos por vários locais que dispunham desse objeto. O seu olhar era tão distante que nem notava a presença material daquele que fora tão indispensável na sua vida.

A mim, o espelho sinalizava para um cuidar incessante, no qual possibilidade, aprendizado e crescimento constituíram-se num tripé essencial ao meu fazer e agir diários.

Atualmente, com minha mãe habitando merecidamente um outro plano e lugar, atesto que avistar ou me deparar com um espelho me remete a um tempo fecundo e único da minha existência, onde inegavelmente o caracterizo como o maior e melhor desafio que experimentei nos meus quase sessenta e quatro anos de vida!

Hoje repito a frase de Carlos Drummond de Andrade: “Cuidado onde tu pisas que é nos meus sonhos que tu andas”.

* Vera Helena Zaitune – Graduada em História, Mestre em História da Educação, Especialista em Educação para o Envelhecimento e Alzheimer. É colaboradora do Portal do Envelhecimento. Email: [email protected]

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