A arte de envelhecer

A arte de envelhecer

Cada vez mais me convenço de que na contemporaneidade, viver a velhice, hoje contemplada como “terceira idade” e proclamada como “melhor idade”, é uma tarefa muito mais complexa e árdua do que há alguns anos.

Marisilda Fernandes (*)

Naturalmente brasileira, nasci e cresci em uma grande metrópole: São Paulo, capital. Por conta de oportunidades de trabalho, percorri e morei em diversos lugares do Brasil, e assim tive o privilégio de conhecer pessoas, culturas e costumes distintos.

Residi em cidades classificadas como grandes, pequenas, rurais, urbanas, turísticas e outras desconhecidas até por brasileiros. Passei por comunidades visivelmente bem estruturadas e outros praticamente sem infraestrutura. Consequentemente, convivi com pessoas de entendimentos, crenças, valores e conhecimentos díspares. E assim, desfrutei e ainda desfruto de convívios intensos, distintos e repletos de altos e baixos que provocam em mim ambiciosas reflexões e despertam questionamentos sobre a vida, o homem e suas histórias, e como tudo isso se relaciona.

Deparei-me também com singularidades entre os indivíduos com os quais estabeleci alguma relação, seja direta ou indireta. Dentre elas, destaco a difícil tarefa de envelhecer, sobretudo na contemporaneidade.

Ao longo desses 30 anos de atuação na área da psicossocial, além de identificar na sociedade a notória fragilidade para lidar com o envelhecimento, independente da classe social, tenho por mim que o nível dessa dificuldade aumenta à medida que o mundo e sua população evoluem. Envelhecer já não era fácil. Com a informatização, a globalização e o avanço da tecnologia, chegar e se manter na velhice se tornou ainda mais desafiador. Ser velho, na atual sociedade, é quase que uma missão impossível.

Quando falo de fragilidade, não me refiro ao processo natural do envelhecimento identificado pela diminuição da energia vital de uma pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Mas sim, ao delicado entendimento da sociedade sobre o processo de envelhecimento e a maneira como uma pessoa idosa é tratada em diferentes âmbitos sociais.

Hoje, o idoso é a parcela da população que mais cresce. O envelhecimento populacional é uma realidade mundial. No Brasil, de acordo com o Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE)os idosos passaram a representar 12% dos brasileiros, ou seja, mais de 23 milhões de pessoas possuem mais de 60 anos. E estima-se que essa porcentagem triplique nos próximos 20 anos.

Essa realidade tem se tornado um problema da modernidade maior que a mudança climática. Isso ocorre porque à medida que cresce o número de pessoas com mais de 60 anos, a sociedade sofre impactos que comprometem suas estruturas, pois não está preparada para acolhê-los. As constantes evoluções, principalmente relacionadas à tecnologia, são pensadas para atender pessoas jovens. Com o número de pessoas idosas sobressaindo, as discussões sobre mudanças no planejamento social se tornam inevitáveis e constantes. São mudanças, inclusive, ligadas a paradigmas que influenciam no desenvolvimento de cada fase da vida humana e a comportamentos, individuais e coletivos, que inclui preparo para lidar com a população idosa, envolvendo-a de modo claro e verdadeiro nas questões sociais, políticas, econômicas e religiosas.

Cada vez mais me convenço de que na contemporaneidade, viver a velhice, hoje contemplada como “terceira idade” e proclamada como “melhor idade”, é uma tarefa muito mais complexa e árdua do que há alguns anos.
Em um passado não muito distante, o homem passava a sua fase juvenil e vida adulta trabalhando para proporcionar à sua família e a si mesmo um bem-estar que lhe permitisse chegar à velhice de forma tranquila. Isso significava que por volta dos 60 anos poderia começar a desfrutar de sua almejada e merecedora aposentadoria. Aqueles que alcançavam essa meta tinham rotinas de vida óbvias pré-estabelecidas pela sociedade, como: ficar sentado em sua cadeira de balanço admirando os dias passar diante de seus já cansados olhos; jogar conversa fora, durante à tarde, na praça do bairro com os amigos e vizinhos da mesma idade; usar parte de seu invejável tempo livre para aconselhar e contar histórias a seus netos e bisnetos; e diariamente se dar o luxo de se acomodar em sua confortável poltrona, adquirida com muito suor, em frente à televisão para assistir seu programa favorito.

Independente do estilo de vida adotado pela pessoa aposentada, seguindo, claro, algumas das rotinas mencionadas, o objetivo desta tão ansiada fase da vida era, mesmo, aguardar a chegada da morte. Aquela pessoa que conseguia chegar à casa dos 60, 70, quiçá 80 anos de idade, mesmo que não gozando de boa saúde estava por satisfeito pelo seu dever social cumprido. Mas na verdade, esse ciclo apontado como único e ideal, maquiava o que na verdade a sociedade pensava: que os idosos eram incapazes de gozar de uma velhice diferente, e que por isso eles eram inaptos para o trabalho e impossibilitados para cumprir seus deveres básicos de cidadania.

Nos dias de hoje, isso praticamente já não faz parte da realidade da população mundial, ou pelo menos, já não é mais tão apreciado, menos ainda seguido como antes.

Hoje, muitos são os caminhos que podem ser percorridos por uma pessoa aposentada, que na maioria das vezes já tem idade superior a 60 anos, e que antes, ao chegar nesta fase da vida se tornava invisível para a sociedade. A escolha de um desses caminhos que acaba sendo diferente do padrão, é uma quebra de paradigma. Outro bom exemplo é a permanência ou retorno de aposentados ao mercado de trabalho. Segundo o IBGE, três em cada dez idosos seguem exercendo atividades remuneradas após conseguirem o benefício da aposentadoria.

E não para por aí, outra evidência de que mudanças têm ocorrido e continuarão a ocorrer em torno do envelhecimento e que também merecem atenção, estão relacionadas aos cuidados com a saúde e ao comportamento da pessoa idosa. Mas que fique claro, envelhecer gozando de boa saúde não é suficiente. Vitalidade, participação ativa na sociedade, espírito jovem, que pode inclusive transcender ou não pela aparência física, passou a ser uma exigência social.

São muitos os idosos que desfrutam de um envelhecimento ativo, com base no aprendizado contínuo e as atualizações constantes para manter-se visível e participativo nas questões econômicas, culturais, civis, sociais e espirituais ao seu redor.

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São transformações e mudanças de conceitos que vejo na prática, diariamente, na empresa de médio porte do segmento da construção civil, na qual trabalho há 11 anos, lidando constantemente com pessoas, sobretudo idosas. Cerca de 20% dos profissionais que compõem o quadro de funcionários da empresa são pessoas acima de 60 anos, aposentadas e que continuam trabalhando por diversos motivos, como, por exemplo, obter uma renda extra para completar sua aposentadoria, manter sua independência financeira e sua autonomia pessoal, sentir-se parte viva na sociedade, provar para si mesmo e para a sociedade sua capacidade e vigor em plena velhice. A empresa ainda mantém em seu quadro cerca de 25% de profissionais com idade acima de 60 anos que ainda não conseguiram a aposentadoria.

São profissionais, de ambos os sexos, que prestam serviços na empresa pelo menos há 25 anos. Eles estão presentes em todas as áreas de atuação da instituição, ocupando diferentes cargos, inclusive de níveis hierárquico.

Por lidar profissionalmente e com frequência com muitos desses indivíduos da “melhor idade”, como alguns preferem ser chamados, posso reafirmar que envelhecer está cada dia mais difícil, e digo mais, envelhecer no mundo corporativo torna a fragilidade da sociedade para lidar com o envelhecimento ainda mais notório.

Facilmente identifico, por meio da minha atuação profissional, inúmeros traços comportamentais, pessoais e profissionais, que me permite traçar diferentes perfis da pessoa idosa do tempo atual, ou seja, aquele que permanece sendo provedor de sua família e mantém suas atividades remuneradas na mesma empresa em que se aposentou.

Tem o caso, por exemplo, do aposentado que continua exercendo atividades operacionais, e que se recusa a ser acometido por qualquer doença, mesmo que uma gripe comum para a idade. Se durante alguma de suas consultas rotineiras for informado sobre qualquer alteração em seus exames, por mais simples que seja, entra em um estado quase que de “neurose” em busca de reverter tal quadro clínico. Esse profissional segue à risca tudo o que lhe for orientado pelo médico do trabalho, pela assistente social, pelo encarregado, enfim, faz tudo para não ser afastado de suas atividades ou ser visto como uma pessoa idosa incapaz de continuar ativo.

Outro perfil bem comum é aquele profissional que deixa transparecer que não aceita que seu corpo envelheça. A rejeição do envelhecimento físico, é perceptível pelo estilo da roupa, pela cor e corte do cabelo, pelas transformações físicas, pelos hábitos e até pelo vocabulário utilizado para se comunicar.

Existe ainda, aquele que faz questão de deixar seus cabelos brancos e apontar cada uma das suas rugas. Para ele, o envelhecimento físico evidência sua experiência de vida e profissional, e que por meio deles ele obterá respeito dos colegas de trabalho e da sociedade.

Tem ainda aqueles que ficam perdidos ora com vergonha de ser velho, ora com receio de parecer novo. Todos esses perfis, por mais seguros que tentem transparecer, exalam fragilidade relacionada ao medo de não ser aceito pela sociedade devido à sua escolha de como viver sua própria velhice.

A fragilidade que insisto em mencionar não está inserida unicamente na pessoa idosa. É visível, é gritante e está escancarada nas pessoas que ainda estão estatisticamente distantes da idade que os enquadrarão na velhice. Refiro-me aos colegas de trabalho que estão iniciando suas carreiras ou estão no ápice do seu desenvolvimento pessoal e profissional, e claramente demonstram, mesmo que de modo inconsciente, que não estão preparados para envelhecer, menos ainda, lidar com a velhice alheia.

Na empresa em que estou inserida, a relação estabelecida entre o funcionário mais velho, tanto de idade quanto de tempo de casa, e o jovem, transita constantemente em uma linha bem tênue e que exige muita atenção para que não se torne discriminatória para ambos os lados. A disputa de espaço é inevitável, pois o jovem quer demonstrar suas qualificações inovadoras e muitos úteis para a empresa, enquanto o idoso quer transmitir sua experiência e seus conhecimentos que sempre atenderam as demandas da empresa por tantos anos. Vejo duas ambiguidades diárias no mundo corporativo, o jovem é questionado por sua falta de experiência, enquanto o idoso é subestimado pelo seu excesso de experiência. É exatamente isso que torna as relações frágeis. Ambas as gerações não sabem como lidar e menos ainda como se portarem diante da outra. Por isso optam pelo caminho mais curto, rejeitar uma à outra. É ambíguo, mas é real.

Mas, e para a empresa, o que significa manter esses profissionais mais experientes ativos?

Entendo que para a empresa, aproveitar a maturidade desses colaboradores pode representar ganhos significativos, já que a expertise e conhecimento do negócio adquiridos ao longo de toda uma carreira profissional, além do comprometimento e responsabilidade para lidar com as diversas situações do dia a dia já não são motivos de dúvidas. Apesar disso, é visível também que os colaboradores mais jovens, além de revigorar a empresa, agregam a ela outros valores que propagam uma transformação a qual nem todos estão preparados para aderir ou acompanhar. Eis que, assim, novos conflitos são desencadeados.

Vejo que esses conflitos estão longe do fim. Por isso sigo inquieta, em busca de respostas concretas, para entender como devemos lidar e vivenciar o envelhecimento de modo tranquilo e natural como deve ser até a finitude da vida.

 

(*) Marisilda Fernandes, psicóloga – Texto escrito para o Curso Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento, da COGEAE/PUC-SP, segundo semestre 2016. E-mail: [email protected]

 

 

 

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